Residência Bienal - Notas & Traços
A simbiose entre música e quadrinhos não é exatamente uma novidade. Na década de 1980, Luiz Gê e Arrigo Barnabé foram parceiros nos emblemáticos álbuns “Clara Crocodilo” e “Tubarões Voadores”. Mas o inusitado deste encontro entre os sons e os traços ganhou outra dimensão nesta edição da Residência Artística da Bienal de Quadrinhos – Online.
Sob a tutoria dos mestres, Gê e Arrigo, os quadrinistas Gabriel Góes (DF), Grazi Fonseca (RS) e Marília Marz (SP) trocaram figurinhas com os músicos Fernando Nicknich (SC), Silvanny Sivuca (SP) e Rodrigo Stradiotto (PR). Foram 10 semanas de intercâmbio. De aceitação do inusitado. E da troca de experiências, vivências e influências, entendidos como expressão artística.
Esta residência resultou em três obras interativas e, acredite, surpreendentes. A saga de um dente melancólico, no caso de Nicknich e Góes; uma distopia atonal, como propuseram Grazi e Stradiotto; e um clipe que exalta o encontro com quem não conhecemos, ao som daquilo que ainda nos move, como nos conta a parceria deslumbrante entre Sivuca e Marília. Clique aí e boa viagem.
INTERVALOS
Grazi Fonseca e Rodrigo Stradiotto
“Intervalos” é o encontro entre o quadrinho de Grazi Fonseca com a música de Rodrigo Stradiotto. Realizada durante a residência artística Notas & Traços da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, com a tutoria de Luiz Gê e Arrigo Barnabé, a obra partiu da interação simbiótica das duas linguagens. O resultado foi a criação de um espaço imersivo onde o papel do leitor se mistura com o dos autores. Para uma melhor experiência, utilize o desktop, os navegadores Mozilla Firefox ou Google Chrome e fone de ouvido.
Grazi Fonseca (@grzfonseca - RS) é quadrinista. Seu trabalho explora narrativas experimentais e autobiográficas. Até o momento publicou 7 títulos. “Partir”, sua publicação mais recente, foi selecionada na convocatória Des.gráfica/Mis 2018 e foi finalista do prêmio Dente de Ouro 2019.
Rodrigo Stradiotto (@r_stradiotto - PR) é músico, compositor, arranjador e produtor, com trabalhos lançados no Brasil, América Latina e Europa. Nos últimos anos voltou seu foco principal à síntese modular e, paralelamente à composição de trilhas para peças e longas-metragens.
“Intervalos” é o resultado do encontro entre o quadrinho de Grazi Fonseca com a música de Rodrigo Stradiotto. Realizada durante a residência artística Notas & Traços da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, com a tutoria de Luiz Gê e Arrigo Barnabé, a obra teve como ponto de partida a tentativa de estabelecer uma interação simbiótica das duas linguagens, que culminasse na criação de um espaço imersivo, onde o papel do espectador se mistura com o dos autores.
O intercâmbio dos trabalhos dos dois artistas foi essencial para o início do processo. Um conhecendo e percebendo as nuances e características da obra do outro. Isso possibilitou uma aproximação e uma sintonia que superaram as barreiras impostas pelo distanciamento físico. A busca por referências foi o passo seguinte. Destaque para a forte orientação da obra de Luiz Gê, em especial o quadrinho “Oba-Oba”, apontando para um caminho de não linearidade de leitura e de multiplicidade de enredos possíveis.
A temática surgiu naturalmente. O isolamento, a reinvenção e a necessidade de transcender significados nesse momento de esvaziamento. Mas sempre com a preocupação de não cair em obviedades que levassem toda a densidade do momento para algum tipo de torpor raso.
Na sequência surge a matemática: fluxogramas, mapas, recortes de pontos e retângulos, a modelagem dos sons, mixagens, estudos e testes para entender se a somatória dos fragmentos resultaria no que se pretendia. Uma construção de um espaço com livre trânsito entre harmonias e dissonâncias, coerências e rupturas. Dessa construção de símbolos os significados começaram a surgir: o azul da reinvenção dos limites físicos; o vermelho dos ensaios e tentativas de ultrapassar os limites físicos e mentais; o amarelo para a necessária transcendência.
Como consequência de todo esse exercício as ilustrações e músicas surgem de um modo quase espontâneo. Para cada quadro um som. Para cada nova leitura uma nova experiência. E uma delicada provocação para desafiar aquilo que aparentemente se mostra como hermético e finito.
O RECOMEÇO É SEMPRE HOJE
Marília Marz e Silvanny Sivuca
O trabalho “O Recomeço é Sempre Hoje”, desenvolvido por Marília Marz (ilustração e quadrinização) e Silvanny Sivuca (produção e arranjo musical) para a 6a Bienal de Quadrinhos, entrelaça a vivência das duas artistas em uma peça que trata sobretudo de resiliência. Família, cidade, negritude, amizade, resistência e combate vêm à tona através de vários rostos e vozes desconhecidas e familiares, que se misturam em uma história única — que é e não é apenas sobre suas autoras. Bora pro choque!
Marília Marz (@mariliamarz - SP) é formada em arquitetura e trabalha com expografia e design gráfico. É também chargista da Folha de São Paulo, ilustradora e quadrinista independente, com um particular interesse por narrativas que tratam da relação entre indivíduo, cidade e arquitetura.
Silvanny Sivuca (@silvannysivuca - SP) é percussionista e baterista de Emicida e Fióti, musicista freelancer na Rede Globo, mestre de bateria do Bloco Me Lembra Que Eu Vou, mestre de naipe do Bangalafumenga SP, membro da curadoria da Natura Musical 2020, produtora musical e empresária. Como educadora, rege uma banda de projeto socioeducativo, com o objetivo de transformar a vida de crianças e adolescentes através da música.
OUTRO LUGAR
Fernando Nicknish e Gabriel Góes
Outro Lugar é a saga de autoconhecimento de um dente, Meu Dente, do início ao fim e do fim ao início; uma jornada rumo à descoberta do outro.
Meu Dente encontra sua própria voz mas logo se perde. Vagando entre as ruínas onde antes havia um país, Meu Dente se recusa a retornar e segue em frente sofrendo a cada passo com a indigna dor infligida por uma cárie e as consequências de seus atos insensíveis. Outro Lugar acompanha Meu Dente, esperneando e fazendo escolhas terríveis até as últimas consequências.
Gabriel Góes (@billysoco - DF) é ilustrador, quadrinista e artista plástico. Co-autor dos projetos independentes SAMBA, Kowalski, Capitão América e Seus Amigos e F A B I O. Ilustrou a adaptação para os quadrinhos das obras de Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto e O Vestido de Noiva. Co-autor da graphic novel Mapinguari e autor do graphic novel Flores. Também é o criador do personagem Billy Soco.
Fernando Nicknish (@fernando.nicknich.music - SC) é produtor musical e compositor, bacharel em Música pela UFPR e mestre em Composição Musical para Cinema e Videogames pela Berklee College of Music. Dedica-se à composição de música para curta-metragens e games nacionais independentes e à produção de artistas do oeste catarinense. Atua ainda como beta tester da software developer norteamericana Soundiron.com.
Esta é a história de dois estranhos, a história do outro.
A convite da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, com curadoria de Mitie Taketani, Vadeco Schettini e Fabio Zimbres e sob a tutoria de Luiz Gê e Arrigo Barnabé, o quadrinista brasiliense Gabriel Góes e o compositor catarinense Fernando Nicknich tiveram total liberdade criativa, o prazo de um mês e as incontáveis possibilidades da potente combinação entre música e quadrinhos para desenvolver um projeto juntos.
Nesse ambiente e influenciados pelo disco Tubarões Voadores, de Luiz Gê e Arrigo Barnabé; pelos romances O Estrangeiro, de Albert Camus e Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão; pela obra de Fabio Zimbres; pela música de Einojuhani Rautavaara e Wojciech Kilar; assim como elementos do tarô, videogames e livros-jogo, Gabriel Góes e Fernando Nicknich criaram uma experiência ímpar e autorreflexiva.
O encontro entre os dois, até então estranhos, resultou na obra experimental multimídia Outro Lugar.
Outro Lugar é a penitente jornada de autoconhecimento de um dente, Meu Dente, do início ao fim e do fim ao início; é um mergulho profundo para dentro do ego, uma jornada rumo à descoberta do outro; o outro em si, e o outro para além de si.
Meu Dente, agora distante de seus pares, descobre sua própria voz mas logo se perde em meio às ruínas de onde antes havia um país. Vagando entre os escombros irreconhecíveis, Meu Dente se recusa a parar ou retornar, segue sempre em frente sofrendo a cada passo com a indigna dor infligida por uma cárie e as consequências de seus atos insensíveis.
Outro Lugar acompanha Meu Dente, esperneando insuportavelmente e fazendo escolhas terríveis até as últimas consequências.
PELA CURADORIA
Entre música e quadrinhos há uma longa história de conexões. Tão longa que dificilmente a Bienal de Quadrinhos conseguiria abordar em apenas uma edição. Alguns exemplos disso piscam na nossa mente quando pensamos nessa relação (a capa de Crumb para Janis Joplin?) enquanto outros, a maioria dessas experiências, ainda não atingiram de fato nosso consciente.
A 6ª edição da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, ao explorar esse tema, partiu de um desses exemplos icônicos para nós brasileiros, a música de Arrigo Barnabé para “Tubarões Voadores”, de Luiz Gê, para começar essa investigação e instigar outras experiências tão ricas quanto.
Uma das ações, a exposição Notas & Traços, foi fundo nos trabalhos de Luiz Gê. A obra explorou uma dimensão ‘musical’ dos quadrinhos e nos trabalhos em colaboração com Arrigo, onde os quadrinhos se colam à música. Uma parceria de mais de 40 anos foi resumida numa exposição online, rica de portas e janelas abertas entre as duas expressões, empurrando uma contra a outra, e buscando o que há de musical nos quadrinhos e de quadrinístico na música.
Outra ação da Bienal foi em outro sentido do resgate: a proposição de novas obras investigando as possibilidades latentes nas propostas de Luiz Gê para a expansão dos quadrinhos enquanto linguagem. Foi perseguindo essa trilha que a residência da Bienal juntou músicos e quadrinistas para criar, a partir principalmente da HQ interativa de 1972, “Oba-Oba”, novos desdobramentos dessa pesquisa. E como resultado, temos três trabalhos que certamente trazem novas possibilidades de enxergar, de entender e de utilizar esse meio chamado Histórias em Quadrinhos.
INTERVALOS (Grazi Fonseca e Rodrigo Stradiotto)
Intervalos são a matéria prima da música e também dos quadrinhos. Nesse sentido parece que os autores resolveram ir ao básico, ao elemento mínimo das duas linguagens, para daí construir o trabalho,de aparência mínima, mas que sugere vários lugares ao mesmo tempo. “Intervalo” é também entendido metaforicamente e aponta para nossa vida em pandemia, colocada em pausa.
Partindo da ideia de leitura aberta contida na história “Oba-Oba” de Luiz Gê, os artistas residentes aproveitaram as possibilidades do meio digital para ampliar as possibilidades de interatividade, em que música e desenhos se fundem numa narrativa que permite vários caminhos comandados pelo leitor.
No universo dos dois autores, a história parece um passo natural para os dois; O uso de elementos básicos e controle dos intervalos entre os quadrinhos e os objetos é recorrente no trabalho de Grazi, enquanto na música, Stradiotto trabalha com sintetizadores modulares que geram sonoridades muitas vezes aleatórias em uma teia de combinações sonoras inusitadas e de estética futurista.
Com esses recursos, os dois se propuseram a criar um ambiente, um universo próprio onde o leitor entra e investiga. E a ideia de um ambiente se confirma no próximo passo que os dois imaginam para essa obra: uma sala formada de sons e desenhos onde o desenvolver da narrativa é acionado pelo movimento do leitor.
O RECOMEÇO É SEMPRE HOJE (Marília Marz e Silvanny Sivuca)
Uma das forças desse trabalho é o pé fincado no analógico: o grande painel, ou uma grande página de quadrinhos, que pode ser lida no todo e no detalhe e sem uma leitura linear favorecida.Outra força evidente é a vertente autobiográfica em que ela se insere. As duas colocaram ali ícones de duas caminhadas de desbravamento, de confronto e de afirmação de identidade e do papel libertador da arte e da criação.
O resultado desse encontro gerou essa grande página de quadrinhos, uma espécie de mapa dessa caminhada dentro da cidade, recebendo impulsos e colocando aqui e ali marcas dessa passagem. Também gerou a fusão das duas formas no vídeo que registra um dos caminhos possíveis de leitura do quadrinhão impulsionado pela música, que por sua vez serve de pulso e de alma para a cidade desenhada. A música mistura cantos africanos, diversas referências urbanas e percussões orgânicas que dão voz a todos os povos, gêneros e culturas. Esta combinação sonora faz com que o ouvinte participe de uma jornada musical ao mesmo tempo sensível e poderosa.
OUTRO LUGAR (Gabriel Góes e Fernando Nicknish)
O universo pop é uma das fontes vitais do trabalho de Gabriel Góes. Também não é distante do dia a dia de Fernando Nicknish, compositor de trilhas para curtas metragens e vídeo games. Os dois caminharam naturalmente, parece, para a ficção científica, e decididamente para a distopia.
Os quadrinhos de Góes são famosos por partirem de referências muito comuns, implodidas até virarem um bicho estranho, até o ponto em que você não sabe bem para o que está olhando: o humor é esquisito, os personagens são patéticos e os desenhos muitas vezes não combinam com a esquisitice e o pathos da história.
A música traz uma dimensão inesperada para a iconoclastia de Gabriel Góes. Há um peso que soma mais uma capa a essa geringonça. Faz algo que o Luiz Gê já assinalava 40 anos atrás: a música torna os quadrinhos mais concretos. Faz a história sair do papel e vir para o mundo. De certa forma, ajuda a completar em nossa cabeça a máquina estilo Góes.
A música de Fernando transita entre o erudito e o experimental, construindo texturas densas e profundas que dialogam com os desenhos e a narração. A sonoridade lúdica e ás vezes áspera nos transporta para uma percepção onírica, em que a realidade e a fantasia se alternam em uma experiência de apreciação única.
É uma história em que podemos escolher entre dois começos. Mas o fim, de certa forma, já intuímos qual vai ser. Tem algo de Akira e algo de Oubapo. E parece que somos apresentados a um novo universo de videogame.
As três duplas, somadas à quarta dupla formada pelos mentores, Gê e Arrigo, se entregaram ao extraordinário A relação entre música e quadrinhos parece capaz de detonar sinapses inesperadas e viciantes. Ao ponto de Fernando Nicknich sugerir que residências desse tipo ocorressem todos os anos. Ninguém entrou pela metade. Todos foram tocados pelas possibilidades que esse encontro proporcionou.
Fabio Zimbres, Mitie Taketani e Vadeco Schettini